terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

QUALIA

(Gustavo Leal-Toledo)

Nas palavras de Güven Güzeldere:

Todos nós temos, aparentemente, um conhecimento em primeira mão, imediato e direto da rica fenomenologia das cores, sons, sabores, aromas e sensações táteis que enriquecem nossas experiências – as qualia. Todos esses elementos constituem um modo específico de ser para cada indivíduo; eles determinam, de acordo com a famosa frase de Thomas Nagel, como é ser aquele indivíduo.

Qualia (plural de quale) é o nome que se dá na filosofia da mente para o aspecto qualitativo das nossas experiências. É como é experenciar o azul, qual a sensação de ouvir uma música, qual o odor que uma rosa tem para você, como é sentir dor em seu pé esquerdo, qual é a sensação de ter ódio de alguém etc. Alguns filósofos não fazem uma distinção forte entre qualia e consciência. David Chalmers, por exemplo, nos diz que

Diversos termos e frases alternativos indicam aproximadamente a mesma classe de fenômenos que são designados por “consciência” em seu sentido central. Tais [termos e frases] incluem “experiência”, “qualia”, “fenomenologia”, “experiência subjetiva” e “como é ser”

No entanto, é possível fazer uma distinção entre qualia e consciência, principalmente se você acredita em percepções inconscientes, pois estas não deixariam de ter um aspecto qualitativo só pelo fato de não serem conscientes. Mas a relação entre qualia e consciência é forte o suficiente para que ambas sejam tratadas juntas como sendo o aspecto qualitativo de uma experiência que é tida como subjetiva. Ou seja, ninguém, além de você mesmo, pode saber como é o azul que você experencia, como é o ódio que você sente. Como tal as qualia são tidas como inefáveis, não há como dizer a outra pessoa como é a experiência qualitativa que tenho. O exemplo mais comum disso é o que diz que é impossível falar para um cego como são as cores ou gesticular para um surdo como é ouvir uma música. Nas palavras comumente citadas, “se você tem que perguntar, você nunca vai saber o que é”. Estas experiências são experiências qualitativas conscientes que só podem ser acessadas, como queria Nagel, de um ponto de vista de primeira pessoa e nunca podem ser traduzidas para um linguajar objetivo de terceira pessoa. Não podemos explicar como é ver o azul do céu. Ao mesmo tempo em que é impossível negar a existência de tais fatos é também impossível estar errado sobre eles. Não posso achar que estou vendo azul mas, na verdade, estar vendo vermelho, achar que estou sentindo uma dor forte no braço esquerdo mas, na verdade, não estar sentindo nada. Só que aquele caráter inefável das qualia leva-nos ao problema de se realmente sabemos do que estamos falando. Além disso, é extremamente difícil dizer o que poderiam ser estas qualia do ponto de vista materialista já que elas parecem se esquivar de qualquer explicação em terceira pessoa.
Para tornar o problema ainda mais complicado, as qualia são muitas vezes tidas como causalmente ineficazes, ou seja, elas não alterariam em nada nosso comportamento ou o funcionamento do nosso cérebro. À primeira vista isto pode parecer muito estranho, como nossa experiência consciente não pode alterar o nosso comportamento? O problema aqui é que as teorias em que as qualia alteram o comportamento chegaram a um “beco sem saída”. Não parecia fazer sentido considerar as qualia como algo físico. Como dizer que o azul que experiencio, a dor e o amor que sinto são coisas físicas em meu cérebro, com um lugar, uma massa, uma cor e um tamanho? Ao mesmo tempo, se as qualia não forem físicas como elas são capazes de causar algo físico? Isto iria contra o princípio da física segundo o qual o mundo físico é causalmente fechado. Mesmo que este princípio estivesse errado, é muito difícil explicar como duas substâncias completamente diferentes poderiam interagir. Nas palavras de Dennett e Hofstadter:

Desde a primeira luta de Descartes com isto, o interacionismo tem tido o problema aparentemente insuperável de explicar como um evento sem propriedades físicas – sem massa, sem carga, sem localização, sem velocidade – poderia fazer uma diferença física no cérebro (ou em qualquer outro lugar).

As dificuldades em responder estas questões levaram os dualistas para o dualismo de propriedades. As qualia passaram a ser consideradas como propriedades não-físicas e causalmente ineficazes.
O problema se torna ainda mais complicado ao notarmos que as qualia, que são consideradas por muitos como algo que nós temos um acesso imediato e inquestionável, foram consideradas por alguns como simplesmente inexistentes. O problema surge quando nos perguntamos o que são as qualia, de que elas são feitas, qual o estatuto ontológico delas. Responder que elas são uma substância mental imaterial não é mais aceito, resta-nos, então, de uma maneira geral, o dualismo de propriedades e o materialismo. Para um epifenomenalista, que é uma forma de dualismo de propriedades, todas as nossas ações e pensamentos são determinados pelo nosso cérebro do mesmo modo como um materialista iria afirmar. Mas um epifenomenalista não para por aí, ele diz que, a partir de um certo grau de complexidade do cérebro, os fenômenos mentais aparecem ou emergem. Assim, os fenômenos mentais são epi-fenômenos, ou seja, fenômenos que estão acima ou além. Os eventos mentais seriam como que meros coadjuvantes, eles seriam causados por eventos cerebrais complexos e não teriam nenhum papel específico a interpretar. Para os epifenomenalistas a mente não tem nenhum poder causal. Churchland nos ajuda a compreender esta teoria falando que, para eles, os fenômenos mentais são como uma espécie de faísca ou lampejo que acontece em cérebros devidamente estruturados. Assim, você tem experiências qualitativas, mas estas mesmas experiências não têm nenhum papel causal. A minha vontade de pegar uma caneta e a minha ação de ir e pegar a caneta não tem relação causal entre si. Na verdade, tanto esta vontade quanto esta ação foram causadas por um mesmo evento físico no cérebro. Já o dualismo naturalista também afirma que a mente não causa nada de físico, mas defende que ela é uma propriedade fundamental do mundo, assim como a massa e a carga elétrica. Deste modo, ela não seria uma espécie de sub-produto do cérebro, como é para os epifenomenalistas, e sim uma propriedade básica do mundo. Aceitar qualquer tipo de dualismo de propriedades é aceitar que nossas experiências conscientes não podem influenciar em nada o nosso comportamento.
Além do dualismo de propriedades temos as diversas formas de materialismo. As teorias da identidade, de um modo geral, identificam a mente ao cérebro seja reduzindo a mente a estados cerebrais ou simplesmente a eliminando. Já para o funcionalismo uma mente é uma mente porque funciona como tal, daí o nome funcionalismo, não importa qual a constituição interna que permita tal funcionamento. O problema aqui seria dizer o que que as qualia são de um ponto de vista materialista. A falta de habilidade que os materialistas tem para tratar das qualia sempre foi uma crítica comum dos dualistas. Muitas vezes estas críticas foram escritas em forma de experimentos de pensamentos, sobre tais experimentos Polger nos diz:

Estes experimentos de pensamento, e muitos outros, têm a função de colocar as questões sobre a natureza e a eficácia causal da consciência em uma forma particularmente evidente. Colocando-nos face a face com entidades que exemplificam nossas teorias, os experimentos de pensamento nos forçam a pensar cuidadosamente nas explicações propostas sobre a mente e a consciência.
É claro que nenhum experimento de pensamento deve ser conduzido no vácuo. O propósito de tais considerações é salientar os comprometimentos, condições e advertências às várias teorias sobre a mente e a consciência.

Tais experimentos são muito comuns na filosofia da mente, podemos citar o experimento das qualia invertidas, qualia ausentes, qualia evanescente, dos zumbis, de Mary, qualia congeladas, qualia fatiadas, quarto chinês, dentre outros. A maioria destes experimentos foi utilizada para atacar o materialismo, mas há no materialismo tentativas de explicar o que são as qualia. Daniel Dennett, por exemplo, foi inclusive considerado com alguém que não acredita nas qualia, o que não é exatamente verdade. O que ele diz é que isto que os filósofos chamam de qualia, estas propriedades qualitativas intrínsecas, não existem. O que há são nossos julgamentos, nossas decisões, nossa memória, nossos pensamentos sobre as qualia e não as próprias qualia enquanto tais. Quando dizemos que ontem o céu estava um lindo azul não estamos nos referindo a uma propriedade qualitativa intrínseca de nossa mente e sim a uma memória de um julgamento. O que estamos dizendo é que lembro que ontem julguei que o céu estava um lindo azul. Assim, Dennett pode dizer:

Você parece achar que há uma diferença entre o pensamento (julgamento, decisão, defesa convicta) de que alguma coisa é rosa para você, e o fato de que algo realmente parece ser rosa para você. Mas não há diferença. Algo como “realmente parecer” não pode ser considerado um fenômeno para além do fenômeno de julgar de uma maneira ou de outra que algo é o caso.

Tal visão inovadora não passou despercebida. Chalmers considera que Dennett sequer tratou do problema difícil, para ele, Dennett só fez uma teoria da capacidade de reportar estados internos e comandar o comportamento. Já Dennett considera que tratou das qualia do único modo que é possível tratar sem ter que pressupor propriedades intrínsecas misteriosas. As discussões sobre as qualia ainda permanecem, abrangendo desde o que elas são até se elas realmente existem. Não parece haver, em um futuro próximo, nenhuma via de consenso, o que torna este um dos temas mais frutíferos da filosofia da mente.